Saramago, o meu barco desconhecido.

Conheci a prosa de José Saramago no final dos anos 1980, mais precisamente em 1989, quando o autor ainda não havia recebido os prêmios Nobel e Camões. Nas páginas do livro intitulado “História do cerco de Lisboa” travei contato com sua escrita original, caracterizada por parágrafos e capítulos longos, sem travessões, aspas, muito diferente de tudo o que eu havia visto até então. Ler pela primeira vez Saramago me exigiu esforço, perseverança e muita atenção. Confesso que levei um certo tempo para me habituar ao seu estilo e cheguei a pensar em desistir, ou deixar para mais tarde. Mas a história do revisor Raimundo, que mudou o curso da narrativa e reescreveu a história ao acrescentar uma pequena palavra ao texto original, me intrigou e me fez querer saber aonde esse autor queria nos levar. Saramago, o revisor Raimundo e eu caminhamos juntos por mais de seis meses. Li e reli trechos inteiros várias vezes, travei debates e questionamentos sobre a história em voz alta, comigo mesma, até finalmente me render a genialidade singela, perturbadora e criativa desse autor dono de uma ironia sutil e, ao mesmo tempo, profunda.

Trinta anos se passaram desde esse primeiro e inesquecível contato com Saramago. Outras obras vieram, sempre com temas interessantes, deixando transparecer uma crítica bem-humorada, embora contundente, a respeito das situações que descreve, com uma capacidade imensa de nos levar a reflexões profundas sobre as mais corriqueiras situações. Todas essas emoções vivenciadas nesse primeiro contato vieram à tona na aula de literatura do curso de pós-graduação em Jornalismo Cultural, quando um texto do autor foi escolhido para ser trabalhado pelos alunos. Imaginei Saramago “sorrindo com os olhos” para mim, traduzindo uma leve ironia em uma piscadela e me dizendo “vai ser divertido novamente”. E não é que foi mesmo?

 

 

“O conto da ilha desconhecida”, lançado em 1998, mesmo ano em que o autor recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, está na sua quadragésima nona reimpressão. Com uma edição primorosa da Companhia das Letras, com ilustrações de Arthur Luiz Piza, o texto curto, que em uma edição mais popular caberia em 20 páginas, ficou belissimamente distribuído em cerca de 60 páginas desta edição caprichada. Porém, mais do que manusear esse livro tão bem produzido, a riqueza do texto deste autor, que tornou a prosa em língua portuguesa conhecida no mundo todo, é o grande tesouro desta obra. Em cada frase, em cada página, Saramago nos faz submergir em nossas próprias experiências e na realidade que nos cerca. Apesar de ficar claro que a história se passa no período em que os reis detinham o poder absoluto, o autor não pontua a época ou o período com exatidão. E isso faz com que seja incrivelmente atual. A divisão de classes, a burocracia, o descaso com os anseios do povo, os interesses escusos e egoístas daqueles que nos governam, a troca de favores, a pouca importância dada àqueles que exercem funções mais subalternas, nos deixam a certeza de que o mundo caminha a passos lentos na direção dos ideais de igualdade e fraternidade. Ao mesmo tempo, Saramago destaca, através das palavras do homem que ousa sonhar e desejar algo diferente, o quanto os poderosos podem ser escravos da posição que ocupam, das suas posses, da bajulação que recebem, que alimenta a sua própria vaidade. A eles não é permitido sonhar, embora pareçam ser os donos dos sonhos dos outros.

Personagens, portas, nomes, funções…

Um detalhe chama atenção neste conto. As personagens não têm nomes, são conhecidas apenas por suas funções, ou ocupações, isto é, pelo que representam dentro da sociedade em que transitam. Esse fato me fez lembrar do nosso mundo globalizado, conectado, imerso no universo das redes sociais, onde podemos ser o que parecemos ser, ou o que dizemos ser. Por outro lado, ao contrário das pessoas, todas as portas têm um nome. A porta dos obséquios, a porta das petições, a porta das decisões… Cada uma tem uma função e um objetivo específico. Arriscaria até a dizer que as portas, sejam elas físicas, ou psíquicas, possuem uma relevância nas nossas vidas, já que são capazes de fechar ciclos ou nos abrir para caminhos novos dentro de cada função, ou objetivo. Saramago parece nos dizer que os objetivos precisam ser claros, para que possam ser atendidos e deixa transparecer sua simpatia por aqueles que ousam abrir os seus horizontes, abrir portas, “abrir a porta das petições”, ou “cruzar a porta das decisões”, por exemplo. O desejo de mudança, o rompimento com a mesmice, a ruptura com o destino traçado por outrem, a busca pelo desconhecido, a ousadia de tentar. Sim, ousadia. O homem insistente, que deseja um barco para ir atrás de uma ilha desconhecida, não aceita um “não” como resposta e sua ousadia também inspira a mulher da limpeza a romper o ciclo da sua vida rotineira.

E assim, a mulher e o homem rumam ao desconhecido, utilizando o barco como meio para buscar esse “novo destino”. Mas o barco, como meio, também é desconhecido de ambos, já que nenhum dos dois sabe como conduzi-lo, o que torna o destino imprevisível. O relacionamento entre os dois durante essa tentativa de conduzir o leme é uma outra “ilha desconhecida” desse mapa de expectativas. É interessante perceber como ambos conseguem ousadamente sair dos seus estereótipos. É como se Saramago brincasse com essas “certezas”. O homem sonhador surpreende a mulher da limpeza ao trazer o alimento para os dois, sem esperar que ela cozinhe para ele. E ela o surpreende demonstrando sua capacidade de decisão, de arrojo, de perseverança, que não cabe no estereótipo daqueles que vivem para servir.

José Saramago, tal qual um barco, nos faz navegar pelas águas do nosso destino, em busca dos nossos sonhos, dos nossos objetivos, rompendo com algumas de nossas certezas ou expectativas e nos levando a desconhecidas e profundas reflexões. A escassez de pontos e a preferência por vírgulas em sua escrita singular parecem nos dizer que as possibilidades nunca terminam e que sempre haverá uma “ilha desconhecida” a ser descoberta.

4 comentários em “Saramago, o meu barco desconhecido.

  • quinta-feira, 14 de novembro de 2019 em 11:07
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    Ao ler esta crônica / resenha, dá vontade de correr à livraria para comprar o livro.
    Definitivamente, “abri a porta da decisão” e ganhei coragem para ler o Saramago.

    • sexta-feira, 22 de novembro de 2019 em 11:36
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      Fico feliz, Denis! Corre lá sim! Acho que você vai gostar!!!

  • sexta-feira, 22 de novembro de 2019 em 11:03
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    Excelente! Às vezes uma leitura difícil nos desencoraja a continuar até o final. Sua persistência despertou minha curiosidade.

    • sexta-feira, 22 de novembro de 2019 em 11:37
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      Amanda, pode acreditar, vale a pena! As reflexões que ele suscita são muitas e profundas.

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